Um livro é uma coisa mágica, é um máquina do tempo que consegue agarrar em alguém que viveu há séculos, no outro extremo do mundo, e transportar-los para nós, fazê-los comunicar com a nossa mente como se de telepatia se tratasse. São minhas as palavras, mas a ideia é de Carl Sagan. São palavras que nunca me canso de transmitir, misturando e remisturando como um DJ faz com os êxitos de verão.
Aqueles que me conheçam, ao ser desafiados a apontar qual a minha paixão, rapidamente dirão que é a medicina dentária. Afinal, foi a ela que dediquei uma quantidade muito considerável da vida, primeiro a aprender, e depois a praticar.
Mas estão enganados. Embora essa arte me agrade muito, e me dê muita felicidade quando a pratico – mal seria, um homem estar tantos anos a trabalhar a contragosto – não me posso declarar apaixonado.
Sim, abanam a cabeça amigos mais próximos. A paixão do Luís são os vídeo jogos, como atesta a sua coleção, e o par de horas que reserva para eles no final do dia, acompanhado de um copo de porto.
Mas não – embora muito tenha escrito sobre eles, embora muito tenha jogado, e embora muito prazer sinta com eles relaxando, não é essa a resposta.
Aqueles mais chegados, mais íntimos – irmãos de mães e pais diferentes, na verdade – dirão, satisfeitos, que a paixão do Luís é crescer. É o estudo, o desenvolvimento pessoal, a vontade e prática de se tornar um homem melhor, e ajudar os que o rodeiam a conseguir o mesmo.
Mas mesmo esses estarão errados.

A minha dedicatória, na edição d’”A Filha do Gelo” que ofereci à Biblioteca Municipal de Caldas da Rainha.
É surpreendente como o dia-a-dia nos consegue afastar das experiências importantes. O meu primeiro livro, acabei de o escrever em 2013, e foi nesse mês que fiz a minha última visita à Biblioteca Municipal de Caldas da Rainha.
Foi ai, numa secretária que lembrava e cheirava como as da escola, mas com menos rabiscos e pastilhas elásticas, ao lado das estantes de literatura estrangeira, que fiz a ultima revisão, com pausas ocasionais – perdão, frequentes – para ler “O Livro das Lendas”, uma pequena antologia de histórias curtas da sueca Selma Langerlof, que lhe valeu o nobel da literatura em 1909.
Foram-se dois anos. Nesses dois anos escrevi muito mais, felizmente, e encaminhei mais um livro, mas a biblioteca ficou para trás. Ficou para trás sem nenhum motivo em especial, da mesma maneira que ficam para trás aqueles amigos e conhecidos. A vida entrepõe-se, o trabalho, a relação, os estudos, a saúde.
Há sempre coisas terrenas que conspiram para nos afastar daquilo que nos faz a alma cantar. Triste facto, porque afinal de contas, não deviam as coisas terrenas servir esse propósito – o de fazer a alma cantar?
Pois ela canta, pois, quando dou por mim novamente a atravessar estes corredores onde se misturam volumes novos com livros muitos anos mais velhos que as pessoas mais velhas que conheci, que a maioria das pedras de calçada que pisei.
Ao atravessar estes corredores, sinto paixão.
Como tenho a certeza que é isto, realmente, paixão?
Não vou descrever com as habituais palavras que refletem sensações no peito, no estômago, ou atrás da testa. Não vou oferecer uma metáfora mais completa do que a que escrevi acima, “a alma cantar”.
Uma vez, em processo contra um vídeo jogo onde as personagens exibiam demasiada carne, a um jurista americano foi perguntado como ele traçava os limites, como ele definia o que era ou não era “pornografia”. Ele respondeu: “Eu não sei definir, mas reconheço-a quando a vejo.”
O mesmo digo da paixão. Não se preocupe o leitor em entender o que é ou não paixão.
Garanto, saberá reconhecê-la quando a encontrar.
Quiçá ao nos cruzarmos por entre prateleiras apinhadas de livros.